Existe uma presença da Filosofia na Saúde e existe uma presença da Saúde na Filosofia. A tradição filosófica, sobretudo a de caráter humanista, sempre investigou os problemas mais graves que envolvem o ser humano em sua existência, curta ou longa, neste mundo. Um dos elementos, talvez o maior de todos, que é fonte perene de sentidos e significações é o sofrimento humano que se faz presente em situações extremas, de uma ponta à outra da vida: do nascimento à morte. A produção de reflexões, visando o sofrimento, encampa todos os fazeres – meios ou fins – do profissional da Saúde. Neste sentido, Filosofia e Saúde se imbricam, tornando-se campos mútuos de interesse. Aqueles que realizam o amparo da saúde do homem fornecem dados invitativos à atenção do filósofo. E este, por sua vez, oferece paradigmas epistemológicos, morais, políticos, existenciais para um sentido do homem contingente que se tornou objeto de ações terapêuticas.
A história do pensamento está recheada de médicos que se tornaram filósofos. Assim como há filósofos que se voltam para a medicina, mesmo que contextualizada em suas fragilidades, para um suporte melhor de seu edifício teórico. A doutrina de um Platão, por exemplo, não pode ser entendida sem que se remeta à compreensão dos pressupostos científicos de um Hipócrates. Há quem afirme a similaridade de uma área no interior da outra. O projeto aristotélico de uma cidadania pacífica e honesta não se dá, sem que se prescreva um conjunto de dietas para a boa constituição física de um cidadão. Durante os séculos de predominância da Fé cristã sobre a Razão humana, em nome de uma imortalidade da carne, princípios fundadores da dignidade singular de cada indivíduo perfizeram uma visão de homem que até hoje estão a influenciar decisões profissionais e científicas no campo da Saúde. Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino não deixarão de ponderar sobre a natureza do mal que, mesmo apesar de seu caráter moral, não se esquiva de se apresentar pelos efeitos do que é saudável no corpo do homem. Mesmo num renascentista político, como Maquiavel, a medicina se faz presente. Lá, está o príncipe para tratar, com precisão cirúrgica, os tumores sociais.
Rousseau, no Emílio, ao reivindicar a exclusividade na educação de um espécime humano, considera a medicina um entrave, justamente por sua natureza artificial, interruptora de uma adaptabilidade do homem ao meio natural. Descartes, o racionalista cético que nos brinda com o sujeito epistemológico, se lança sobre o objeto-corpo humano com a mesma curiosidade do anatomista médico. A modernidade, ao mesmo tempo em que libera a Ciência para dessacralizar a natureza, incluindo aí a pesquisa médica, faz dos feitos, realizados deste mesmo conhecimento, o suporte de novas epistemologias. A noção de um mundo de corpos físicos passíveis de explicação mecânica se orienta para e com a medicina. À reboque de Descartes, o filósofo e médico La Méttrie cunha a noção do homem-máquina. De igual forma, uma doutrina que se contraponha à tradição mecanicista inaugurada, seja para ressaltar os sentimentos do homem, seja para enaltecer suas funções vitais, seja ainda para precisar o papel da percepção no conhecimento humano, será ainda o acesso à medicina a atitude mais freqüente.
A pesquisa aparelhada padece de uma ambigüidade, segundo Foucault. Quer liberar o homem e, ao mesmo tempo, produz suas algemas, exercendo o controle sobre os corpos e criando uma política do corpo. Ele não teria vislumbrado isso, sem antes ter partido para a compreensão da clínica. De outra forma, quando o paradigma moderno de Razão e de Ciência começa a trincar, em virtude de sérias críticas, será ainda o fator do sofrimento humano, efetivado sistematicamente por modelos políticos ambiciosos, o ponto decisivo. A Saúde é, sem duvida alguma, o fio condutor das convicções de um Freud. Está, de mesmo modo, em todo o arcabouço virulento de um Nietzsche.
E é ainda a Saúde quem preside as premências éticas dos dias atuais. Seja a saúde do homem, seja a saúde dos animais, seja a saúde do Planeta. Diante da crise de paradigmas, na pós-modernidade, a filosofia tem voltado para sabedorias antigas, como a estóica e a epicurista. E, nestas, pode-se constatar a preocupação generalizada do equilíbrio humano em conformidade com a natureza. E, entre os cuidados recomendados, proliferam as vozes que orientam condutas em relação à finitude humana: a morte. É a saúde entrando, novamente, pela porta dos fundos, para instar à filosofia.
Ocorre que, com a modernidade mesmo, as áreas do saber se tornaram especialidades. As ciências passaram a se justificar pela delimitação de seus objetos. Proliferando-se e reduzindo-se conforme a especificidade de cada uma, ciências de caráter generalizante, como a Filosofia, são facilmente tomadas como dispensáveis ou, outras vezes, não mais são percebidas como conseqüentes para uma área específica, cujo propósito é imediatista e utilitarista. Ela não é percebida, sobretudo em cursos que visam saberes práticos e mercado certo, como coisa essencial. Esta noção, não raras vezes, bate à porta do estudante da Saúde. O que fazer com a filosofia ali, com essa coisa excessiva que parece atrasar propósitos? Em vista disso, assistimos a uma partição desta, que foi o nicho de todos os saberes no passado, em discursos de respaldos, na esperança de que ela justifique sua existência num determinado curso. Assim, quer-se que a Filosofia seja aplicada à Enfermagem, à Farmácia, à Educação Física, à Medicina, etc. Este pensamento é redutor e descaracterizador. Todavia, pensar Filosofia e Saúde não reza por aí. Justamente, porque a imbricação de ambas é muito antiga, está no nascedouro da própria Filosofia. Trata-se de um pensar mais universal que o reduzi-la a pequenas fatias para torná-la atraente a alguns cursos.
Os capítulos desenvolvidos buscam mostrar a relação íntima entre Filosofia e Medicina. Dizer que existe a presença de uma na outra é querer que a Filosofia permaneça inteira em sua identidade e inteira ainda como objeto de investigação. Se ela oferece sentidos sobre o humano do homem, é doadora também de autorizações dos fazeres sobre este mesmo homem. A Saúde é produtora de filosofia. E quer-se que ela, assim como é produtora, tenha, por justiça, uma atitude de escuta e diálogo com o pensamento que provocou.
Imagem: Ciência e caridade – Óleo de Pablo Picasso, 1897.
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MEDICINA
Aqui, estão indicados os textos, slides e vídeos-aula da disciplina FILOSOFIA E SAÚDE do Curso de Medicina da Universidade de Gurupi – UnirG:
TEXTO:
TEXTOS ESPECÍFICOS do livro FILOSOFIA e SAÚDE:
1 – Filosofia e Medicina nos pensadores pré-socráticos.
2 – Hipócrates: a Medicina como Ciência.
3 – Sócrates e Platão: a cura da alma.
4 – Aristóteles: a Saúde como virtude e dever do Estado.
5 – Estoicismo e Epicurismo: a vida regrada.
6 – O Cristianismo e o surgimento dos fundamentos morais da Ética da Saúde.
7 – A Modernidade em René Descartes e implantação da visão mecanicista nas pesquisas da Saúde.
8 – La Mettrie e o elogio do homem-máquina.
Disponíveis no livro do professor:
VÍDEOS-AULA de FILOSOFIA e SAÚDE: Playlist no Canal You Tube
SLIDES ESPECÍFICOS do livro FILOSOFIA e SAÚDE:
Texto:
1 – Filosofia e Medicina nos pensadores pré-socráticos.
TEXTOS DIVERSOS de FILOSOFIA e SAÚDE:
1. Hans-Georg Gadamer:
Sobre o caráter oculto da saúde (Hans Georg Gadamer)
Apologia da arte de curar (Hans Georg Gadamer)
2. Susan Sontag:
Doença como metáfora (Susan Sontag)
Ais como metáfora (Susan Sontag).
3. Georges Canguilhem:
As doenças (Georges Canguilhem)
A saúde: conceito vulgar e questão filosófica (Georges Canguilhem)
É possível uma pedagogia da cura? (Georges Canguilhem)
O problema das regulações no organismo e na sociedade (Georges Canguilhem)
4. Textos sobre o suicídio:
Do suicídio (Immanuel Kant).
Do suicídio (David Hume).
Sobre o suicídio (Karl Marx)
Sobre o suicídio (Arthur Schopenhauer)
As nuances do suicídio na Idade Média (Georges Minois).
A herança medieval: entre loucura e desespero (Georges Minois).
A epidemia oculta (Andrew Solomon).
A chave de nossa prisão (Marzio Barbagli)
Matar a Deus, a si mesmo e aos outros ( Marzio Barbagli)
5. Textos sobre a morte:
A morte íntima (Marie de Hennezel)
A solidão dos moribundos (Norbert Elias)
6.Textos sobre o sofrimento:
Quando o pensamento se questiona – Os três tempos do sentido do sofrimento [Resposta tradicional frente ao sofrimento; Resposta moderna frente ao sofrimento (Bertrand Vergely)]
Segunda dissertação “culpa”, “má consciência” e “coisas afins” (Friedrich Nietzsche)
O mal-estar na civilização (Sigmund Freud).
7. Textos sobre o ser médico:
O médico na era da técnica (Karl Jaspers)
A ideia de médico (Karl Jaspers).
Médico e paciente (Karl Jaspers).
Os desvios religiosos e o saber médico (Michel Foucault)
Médicos, juízes e bruxos no século XVII (Michel Foucault)
8. Medicina e sociedade disciplinar:
As grandes funções da medicina em nossa sociedade; O mundo é um grande hospício (Michel Foucault).
O nascimento do hospital (Michel Foucault).
Os recursos para o bom adestramento; O panoptismo (Michel Foucault).
Sociedade do cansaço (Byung-Chul Han).
Epidemias: intervenções médico-políticas como paradigmas de crítica da modernidade (José Carlos de Freitas).
Fatia de vida (Monteiro Lobato)
SLIDES:
A saúde: conceito vulgar e questão filosófica (Georges Canguilhem)
É possível uma pedagogia da cura? (Georges Canguilhem)
O problema das regulações no organismo e na sociedade (Georges Canguilhem)
A morte íntima (Marie de Hennezel)
O mal-estar na cultura (Sigmund Freud)
O médico na era da técnica (Karl Jaspers)
Os desvios religiosos e o saber médico (Michel Foucault)
Médicos, juízes e bruxos no século XVII (Michel Foucault)
As grandes funções da medicina em nossa sociedade; O mundo é um grande hospício (Michel Foucault)